O poeta e o guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor

Esses são os primeiros versos do poema “Eu Nunca Guardei Rebanhos”, de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O poema é o primeiro da obra O Guardador de Rebanhos. Mas o que tem a ver o poeta bucólico e defensor da simplicidade, que é Caeiro, com o pastorear ovelhas e cuidar de rebanhos? Caeiro, sem a pretensão de fazer metáforas ou de pensar demais, acaba nos deixando uma rica metáfora e uma grande fonte de pensamento.

No grego, a palavra “poeta” — ποιητής (poiētḗs) — significa “criador”, “fazedor”. Segundo o Dicionário de Oxford e o Merriam-Webster, do grupo da Enciclopédia Britânica, a palavra também compartilha um ancestral com a palavra sânscrita cinoti, que significa “reunir”, “agrupar” e, em certos contextos, segundo outras fontes,  ordenar”. Eis o poeta!

Vejamos como a grafia de “pastor”, no grego, se assemelha à palavra “poeta” em sua raiz: ποιμήν (poimēn). O que faz um pastor de ovelhas? Cria, agrupa, cuida, ordena.

É difícil dizer se Pessoa, ou melhor, Caeiro, tinha em mente tudo isso ao escrever sua obra, mas a metáfora é totalmente plausível e bela. Vejamos mais um trecho do poema:

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

O poeta pastoreia um rebanho de ideias e palavras, tornando tudo em pura arte. Caeiro nutria certo desprezo pelas abstrações e, me pergunto até que ponto ele cedeu à abstração — como fizeram alguns poetas parnasianos brasileiros — ou se estaria levando extremamente a sério a comparação entre o poeta e o pastor. Talvez isso nem tenha tanta importância assim, pois, de todo modo, ele estaria correto.

Não seria mesmo nenhum contrassenso, até o grande Virgílio, em sua Bucólicas, exalta pastores eruditos, o que parece uma idealização — a própria palavra “bucólica” tem origem grega que significa “pastoril” —. Mas e o que parece ainda mais idealização do que um pastor, sendo poeta, fosse também guerreiro e ainda venha a ser rei? Não foi o caso de Davi? Bem, seja mesmo metáfora ou não, “Minha alma é como um pastor”, ainda que eu nunca tenha guardado rebanhos.

Autor: Anderson C. Sandes


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