Mario Vargas Llosa e a verdade perpétua da literatura

“A arte não reproduz o visível, ela torna visível.” (Paul Klee)

Que saudade de conversar com meu pai! O tema predileto de nossas conversas era literatura; graças a ele, fui apresentado a um mundo fascinante habitado por personagens inesquecíveis como Tolstói, Dostoiévski, Kafka, Borges, Proust, Henry Miller, Shakespeare e tantos outros.

Um dos autores que discutíamos frequentemente era o peruano Mario Vargas Llosa, que morreu aos 89 anos neste Domingo de Ramos.

Em 1978, pouco antes do Natal, eu passeava com meu pai pelo Centro de São Paulo quando ele entrou numa livraria e comprou um volume de capa branca intitulado “A Orgia Perpétua”. Ao sairmos da loja, perguntei:

— Pai, o que é orgia?

Ele hesitou por um instante, mas logo disse:

— É uma festa em que as pessoas se divertem muito, bebem muito, comem muito, cometem excessos…

Não é admirável o esforço em explicar o que é orgia a um menino de 8 anos? Esse era meu pai.

Mas eu não estava satisfeito. Lancei uma segunda pergunta:

— E o que é perpétua?

Essa era mais fácil. Ele sorriu e disse com total segurança:

— Perpétua é algo que dura para sempre.

O resultado imediato dessa conversa foi que na festa de Natal de 1978, vendo todo mundo da família beber, comer e se divertir à vontade — que exagero! —, eu arrisquei um comentário:

— Nossa, que orgia!

Anos depois, na época da universidade, quando atravessava um período de depressão, li “A Orgia Perpétua” (por sinal, aquele mesmo exemplar comprado por meu pai na livraria Avenida São João).

Digo, sem medo de errar, que foi um livro fundamental para minha trajetória de escritor. Nesse longo e impactante ensaio, Llosa mergulha no universo do romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert.

Em uma passagem particularmente memorável, o escritor confessa que a leitura de “Madame Bovary” em Paris salvou-o do suicídio.

Essa afirmação (até por se referir a um romance em que a protagonista comete suicídio) teve grande importância para mim naquele momento.

De certo modo, posso dizer também que Llosa me ajudou a sair da depressão e dos pensamentos autodestrutivos

Após ter lido “A Orgia Perpétua”, mergulhei na obra ficcional de Mario Vargas Llosa. Comecei pelo hilariante “Tia Júlia e o Escrevinhador”, avancei pelo pouco conhecido, mas comovente “História de Mayta” (sobre um jovem destruído pela mentalidade revolucionária).

Mario Vargas Llosa, gigante da literatura e vencedor do Nobel de 2010, morre aos 89 anos neste domingo (13). (Foto: Arild Vågen/Wikimedia Commons)

 

Encarei o épico “A Guerra do Fim do Mundo” (uma fascinante reconstituição ficcional da Guerra de Canudos, em que o nosso Euclides da Cunha é personagem).

Apreciei as memórias políticas de “Peixe na Água” (em que Llosa narra sua candidatura a presidente do Peru em 1990) e me encantei com o romance de formação “A Cidade e os Cachorros”.

Lamentavelmente, não li “Conversa na Catedral” e “A Casa Verde” — mas pretendo fazê-lo agora. (E quando digo agora, é agora mesmo: escrevo este texto na Biblioteca Municipal de Londrina e vou fazer o empréstimo dos dois livros daqui a alguns minutos.)

Pouco antes da morte de meu pai, foi a minha vez de comprar um livro do Llosa para ele: “A Verdade das Mentiras”, uma sensacional coletânea de ensaios sobre grandes romances e novelas da literatura universal. Ah, vocês sete não imaginam como esse livro rendeu ótimas conversas com meu pai…

A abordagem de Llosa me faz lembrar uma frase atribuída a Pablo Picasso: “A arte é a mentira que nos faz ver a verdade”. Da mesma forma, livros como “Doutor Jivago”, “O Estrangeiro”, “O Grande Gatsby” e “Santuário” nos oferecem chaves simbólicas para a compreensão da realidade e o fortalecimento da alma.

Se em 1978 eu não compreendi bem o que significava a palavra orgia, em 2008 eu entendi perfeitamente o sentido da palavra perpétua.

No dia 7 de outubro de 2010, quando liguei o computador para ver as notícias do dia, levei um susto: a foto de meu pai estava na manchete do jornal.

Olhei uma segunda vez e percebi que não era Paulo, mas era a imagem do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura: Mario Vargas Llosa. Sim, eles eram fisicamente muito parecidos.

Espero que Paulo e Mario possam agora ter boas conversas lá na Catedral de Deus. E imagino que o assunto será a verdade perpétua da literatura.


Por: Paulo Briguet

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