Brevidade: um encontro com a vida
“Brevidade” surge como produto daqueles dias em que a gente percebe, de repente, que a vida é curta demais para ser vivida no automático. É sobre parar em meio à caçada e deixar cair as armas, desistir das armadilhas e ouvir o mundo ao redor, com suas pequenas e insistentes belezas. O poema nasceu dessa pausa: um instante em que a própria máquina do mundo me disse que a pressa e a luta nem sempre são o melhor caminho para todos. A seguir, teremos o poema e, adiante, uma breve explanação, que revela seus símbolos e intenções.
Brevidade
Anderson C. Sandes
Andava ao ermo, sonolento
Com a face cálida e pálida
Jazia a sombra delgada
E longa, a sentido leste, ao vento
Como agulha de bússola quebrada
Fiel em sua errância certa
Cortou-me a sombra
A sombra d’um urubu
Rasante o augúrio que foi
Tremi a base à bamba
Larguei a carabina
Num instante sóbrio
E dirigi-me ao umbuzeiro
Sobrou-me o repouso
Fechei os olhos
E ouvi a música
Da máquina do mundo:
A casaca de couro
O coleirinho
O sabiá
O divino pardal
O temido carcará
O barulhento ferreiro
O cava-chão… não!
Quanto augúrio!
Belíssimo augúrio
É a brevidade da vida
Sim!
Sacudi o sobrolho e levantei
Já era noite e tudo era sombra
Outras aves e bichos
Cantavam agora
Deus me livre!
Ruidosa essa máquina!
O bornal vazio, olhei
Foi um alívio
Cansei-me das caças
De correr entre espinhos
Do cheiro de fluidos
Das vísceras lançadas
Das armadilhas
Está consumido!
Está consultado!
Está consumado!
Amanhã será diferente
Não em tudo, mas será
A sombra delgada
Continuará espichando
Em sentido leste
Deixa o sol trabalhar
A música da máquina
Continuará igual
Cada dia mais bela e rara
Vazio estará o bornal
Pois a caçada é cara
Em paz vou repousar
À sombra, em algum quintal
Explanação
Andava ao ermo, sonolento
Com a face cálida e pálida
Jazia a sombra delgada
E longa, a sentido leste, ao vento
Como agulha de bússola quebrada
Fiel em sua errância certa
“Brevidade” é um poema sobre a brevidade da vida, descoberta e mudança de rumo. O eu lírico começa andando ao ermo, sonolento, é a solidão de certos momentos da vida, um presságio para a morte. A sonolência é símbolo da morte vindoura, mas ainda não chegada — é também um embotamento que anestesia e tira o prazer da existência —. É por isso que tem-se a face pálida, mas ainda cálida, com calor.
A sombra delgada é a desnutrição da alma, que se alonga em sentido leste. A sombra está para leste pois é o pôr do sol, o fim do dia, a morte do dia, começo do reinado das trevas. Estar ao vendo é estar sem destino, deixar ser levado, como a bússola quebrada, que segue fiel em seu erro. A sombra longa e delgada é como a agulha da bússola quebrada.
Cortou-me a sombra
A sombra d’um urubu
Rasante o augúrio que foi
Tremi a base à bamba
Larguei a carabina
Num instante sóbrio
E dirigi-me ao umbuzeiro
Sobrou-me o repouso
A sombra de um urubu, ave que se alimenta de restos mortais, corta a sombra do andarilho, e isso o é como um augúrio, um presságio para o eu lírico que treme e larga a carabina. A carabina é sua arma, é com ela que se defende e ataca, é o domínio sobre a natureza, é toda sorte de artimanha, desde as palavras, dons, gestos e maquinações variadas da vivência. Esse é o momento de abertura ao despertamento, de recolhimento e repouso contemplativo. O umbuzeiro é símbolo de resiliência sertaneja, ir a ele é como resistir.
Fechei os olhos
E ouvi a música
Da máquina do mundo:
A casaca de couro
O coleirinho
O sabiá
O divino pardal
O temido carcará
O barulhento ferreiro
O cava-chão… não!
Quanto augúrio!
Belíssimo augúrio
É a brevidade da vida
Sim!
Finalmente a contemplação e o despertar à realidade, que se abre como a máquina do mundo, mencionada no belo poema de Carlos Drummond de Andrade — A Máquina do Mundo — e em outros pensadores. Tal máquina é o universo aberto àquele que contempla a ordem divina de toda a criação. E o eu lírico ouve agora com mais atenção e beleza. Mais uma vez se depara com a ideia da brevidade da vida, ao ouvir o “cava-chão”, que lembra sepultamento. Desta vez vê o augúrio de forma bela e desapegada.
Sacudi o sobrolho e levantei
Já era noite e tudo era sombra
Outras aves e bichos
Cantavam agora
Deus me livre!
Ruidosa essa máquina!
O bornal vazio, olhei
Foi um alívio
Cansei-me das caças
De correr entre espinhos
Do cheiro de fluidos
Das vísceras lançadas
Das armadilhas
Está consumido!
Está consultado!
Está consumado!
Aqui há o despertar da contemplação, a volta para o cotidiano comum que aguarda. A habilidade de ouvir ainda permanece, ainda que mais sutil e até incômoda, pois passada a contemplação mais elevada, os sentidos se confundem. O eu lírico olha o bornal vazio e fica bem por isso, é sinal de que a caça foi ruim. Ele está cansado da caça e do processo. Está cansado já da vida cansativa. Está consumido, o proveito foi tirado; está consultado, analisado, pensado, refletido, a vida examinada e, por fim, consumado, acabado. “Está consumado” são as últimas palavras de Cristo ao concluir o seu chamado. É para o eu lírico o ponto alto: saber que sabe. Abrir-se à possibilidade do fim, do repouso.
Amanhã será diferente
Não em tudo, mas será
A sombra delgada
Continuará espichando
Em sentido leste
Deixa o sol trabalhar
A música da máquina
Continuará igual
Cada dia mais bela e rara
Vazio estará o bornal
Pois a caçada é cara
Em paz vou repousar
À sombra, em algum quintal
Essa abertura transforma nosso andarilho, que pensa no amanhã, ainda que em parte monótono e repetido, será diferente, pois tem agora outro olhar. O mundo todo seguirá à sua maneira, a mudança está no personagem. O caminho é o mesmo, mas o caminhante já não é mais. Assim seguirá sua vida, mais serena, com menos luta e mais repouso.
Assim, como Severino, personagem de João Cabral de Melo Neto — Morte e Vida Severina —, encontra nosso andarilho, na caminhada ruma à morte, o sentido da vida, e renova o seu desejo de vivê-la.
- Início (o começo do fim); 2. Interrupção (despertar); 3. Revelação (contemplação e compreensão); 4. Transformação; 5. Paz final (descansar em paz)
Site: andersonsandes.com.br
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