Poeta e profeta como portadores da memória de um povo. Entenda.
A Grécia Antiga não dominava a escrita, sendo uma sociedade àgrafa. Sua memória era conservada depositada na mente de seu líder religioso, que decorava toda a história do povo.
Esse líder religioso decorava essa memória através das mnemotécnicas, técnicas de memorização, como o uso de métrica na hora de falar, aliterações, rimas, repetições, melodias cantadas…
Periodicamente o povoado se reunia para ouvir o pajé, o adivinho ou o sophos, que era o sábio ou mestre da verdade, para contar a história do povo.
A memória do povo estava na mente de uma única pessoa, que usava técnicas de memorização para contá-las a todos, já que não havia escrita.
Essa responsabilidade de ser o depositário de toda a memória de um povo era passada a um discípulo que se tornaria depois o novo líder religioso da tribo, ou novo médium. Seria o próximo que, naquele grupo, faria a mediação entre os deuses e os homens.
Sua palavra era uma palavra inquestionável, porque ele não estava falando de si mesmo; ele, como profeta, falava em nome dos deuses.
Um poeta como Homero começava suas obras fazendo a invocação das musas inspiradoras.
Na Grécia Antiga, na mitologia grega, as musas inspiradoras eram as filhas da deusa da memória, Mnemosine.
Daí vem a noção de amnésia, que é perder a memória, perder a inspiração da Mnemosine e de suas filhas musas.
O poeta, quando ia cantar a história do povo, pedia ajuda às musas.
A palavra do poeta era chamada, conforme Marcel Detienne, uma palavra inquestionável, porque diz o que era, o que é e o que será. Ela preenche todo o tempo, e não pode ser questionada, já que questioná-lá seria questionar a autoridade dos deuses.
Poeta vem de poiesis, termo grego que significa construir, fabricar.
A tradução latina do termo é producere, produzir. A etimologia da palavra explica que pro significa para frente, e ducere significa conduzir ou trazer.
Então o poeta como que traz à tona o que está oculto; ele também é um profeta, dotado de um poder que Detienne chama de “saber mântico”, no sentido de adivinhação – um saber divinatório.
O poeta, portanto, tem o dever de pro-duzir, de trazer à tona a verdade que está oculta.
O poeta antigo, intermediário entre os homens e os deuses, acabou se tornando com o tempo o braço direito dos reis.
Os reis eram considerados descendentes diretos dos deuses, quando não filhos.
Os reis mais recentes da história grega, como Alexandre o Grande, arrogavam para si essa descendência.
E era função dos poetas, portadores da memória histórica do povo e “produtores de sua verdade”, confirmar essa descendência, ou seja, ratificar o poder dos reis.
Hesíodo, outro poeta grego, fez isso em sua Teogonia, ao contar a origem dos deuses, contava também a dos filhos dos deuses, que na Grécia eram chamados de semideuses.
Obs: Há uma dupla semelhança fonética entre musa e música, e a que há entre musa e museu.
Em grego, dizia-se musiké téchne, que significa a ‘arte das musas’ para referir-se ao que hoje chamamos de música, ou arte musical.
O museu é o lugar onde se guarda a memória do povo. É o depósito da memória.
Na biologia, os órgãos que fabricam o sangue, como o baço e a medula óssea, são chamados de órgãos hematopoiéticos ( hema, sangue, poiético, o que fabrica ).
Trecho adaptado de Manual de Sobrevivência do Conservador no Séc. XXI – Daniel Lopez
Mestres da Verdade na Grécia Antiga – Marcel Dettiene
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