O Nascimento do Ballet
Do Teatro Popular Religioso Medieval surgiu o espetáculo que um dia se chamaria ballet!
Surgiram os primeiros tratados de dança. Em 1455, Antonio Cornazano escreveu o “Livro sobre a arte de dançar”, no qual o autor fazia uma distinção entre dança popular e dança aristocrática ou arte, explicando que a última era construída a partir de variantes em torno de uma fábula ou enredo e denominou-a balletto.
A primeira dança – a entrada – executada no balletto cortesão foi a Mourisca, oriunda das primitivas danças de armas. Universais, elas representam uma batalha entre mouros e cristãos e constituem-se no motivo essencial de várias manifestações folclóricas brasileiras, como as Cheganças e as Cavalhadas, refletindo a herança luso-hispânica, que chegou ao nosso povo durante o processo de colonização.
Entretanto, na Renascença, a Itália, mais precisamente Florença, é que conferiu unidade dramática à encenação, desempenhando um papel fundamental na transformação das danças e celebrações de corte em formas mais estruturadas e artísticas. Catarina di Medici, figura influente e apaixonada pelas artes, foi a responsável por levar para a França, ao se casar em 1533 com o futuro rei Henrique II os costumes de sua terra, o requinte florentino, o gosto pelo balletto e, como parte de seu dote trouxe também o violonista e maestro de danças Balthasar de Beaujoyeux. Foi sob sua direção e a tutela de Catarina que se realizou o que é considerado o primeiro ballet da história: o “Ballet Comique de la Reine” encenado em 1581.
Esse espetáculo uniu dança, música, poesia e teatro em um torno de um enredo coeso, que enfatizava a narrativa e a estética. O evento ressoou em todas as cortes europeias e lançou as bases para a universalização e desenvolvimento do ballet clássico nos séculos seguintes. O tema, mitológico, como aconteceria por mais dois séculos, versava sobre Circe, a feiticeira, associada à própria Catarina. A clara metáfora do poder real sobre todos os membros do reino e a preocupação em intimidar as demais cortes importantes da época com o luxo e a ostentação da encenação, sinônimo da supremacia econômica da França, realçam o aspecto prático que esteve presente na origem do ballet. O espetáculo durou mais de cinco horas e custou três milhões e meio de francos.
Marguerite de Vaudemont e Duque de Joyeuse
A participação profissional resumiu-se por muito tempo aos maestros de dança, mas as bases do ballet-espetáculo estavam lançadas.
A evolução do ballet inverteu o espírito dos espetáculos: enquanto as primeiras encenações serviam principalmente como forma de bajulação e exibição de poder e status dos nobres, voltados apenas para o deleite e a vaidade, com o tempo o foco se deslocou para agradar a um público mais amplo e exigente, não mais limitado à corte.
Durante o período entre o primeiro Ballet Comique e a criação da Académie Royale de Danse em 1661, o Ballet de Corte evoluiu através de várias formas e estilos refletindo a fusão do virtuosismo trazido pelas danças italianas aprimorados pelo gosto estético francês.
Em curto espaço de tempo a nobreza perdeu seu lugar para os artistas profissionais. Os tratados de dança continuaram a ser escritos estabelecendo regras e formas de executar os passos das danças.
Em marco de 1632, a encenação do primeiro ballet em uma sala de espetáculos, ainda que conectada à plateia por uma rampa e sem uma clara divisão entre palco e público, já sinalizou um novo caminho para as encenações. O ballet começou aí o seu processo de libertação do amadorismo. Além disso, um acontecimento transformou radicalmente o panorama da dança: o nascimento de Luís XIV.
Luís XIV amava ballet e o usou até como arma de Estado. Bailarino talentoso, no Ballet Royale de la Nuit, ele desempenhou o papel de Apolo, o Sol, e com a alcunha de “Roi Soleil” passou à história. No enredo do ballet, o personagem do rei tinha uma razão de ser política e importante; nele o Sol adentrava o salão com a finalidade de clarear e livrar uma casa em chamas (a França) de saqueadores (o povo), que assim agiam protegidos sob a escuridão da Noite. Com ele entravam também a Honra, a Graça, o Amor, a Riqueza, a Vitória, a Fama e a Paz. O ballet teve grande êxito em função do talento, versatilidade e habilidade política do instrumentista e bailarino Giovanni Battista Lulli, o Lully. Natural de Florença, ele chegara à França em 1644 e no ano da estreia do “Ballet Royale de la Nuit”, em 1653, já foi nomeado “Compositor da música instrumental da corte”.
No governo de Luís XIV o ballet recebeu enorme impulso, assim como as demais artes. Como nas óperas, os espetáculos começaram a ser apresentados para um público pagante, o que modificou as relações anteriores entre espectador e artista.
Em 1661, foi criada a Académie Royale de la Danse sob a inspiração da Académie de Peinture. Pretendia-se criar aquilo a que Mário de Andrade definiu como “determinada concepção técnica e estética de Arte, seguida por vários artistas”, ou seja, uma escola.
Luis XIV no papel de Apolo: Le Roi Soleil
Théatre de l’Académie Royale de Musique
A Academia de Danse não produziu, porém, o resultado esperado. A parte instrumental era pouco valorizada. A orquestra ainda não apresentava uma formação definida nem tinha um lugar estabelecido na sala de espetáculo. Lully, grande compositor, não aceitou esse estado de coisas. Em pouco tempo não se podia afirmar se a obra encenada era um ballet ou uma ópera, o que deu origem ao gênero ópera-ballet.
Antes disso, Lully teve um importante encontro com o famoso ator e grande dramaturgo Molière. Juntos idealizaram o gênero Comédie-Ballet, que se tornou uma das referências artísticas mais importantes do período; bons conhecedores das farsas italianas, a elas juntaram canções, coros, danças e elementos da Commedia dell’Arte. O brilho das encenações refletiu não só o talento do compositor, mas também o do genial teatrólogo Molière, autor de um texto ímpar da história do teatro, cuja atualidade é indiscutível.
Em 1669, Luis XIV criou a Académie Royale de Musique dotada de uma Escola Oficial de Dança. À Escola de Dança, coube sistematizar o ensino do ballet, desenvolvendo um esquema básico e rígido de posições de cabeça, tronco, braços e pernas sob a orientação de Pierre Beauchamps. Os membros da escola de dança também foram associados à ópera, ficando conhecidos como o Corps de Ballet de l’Opéra permitindo que seus membros se dedicassem apenas ao ballet. Em 1713, uma escola de ballet associada foi aberta e hoje é conhecida como École de Danse de l’Opéra de Paris.
Os princípios sobre os quais Beauchamps construiu a base do ballet tornaram-na a mais duradoura de todas as formas de dança; como um alfabeto, com o qual é possível falar inúmeros idiomas, tal o significado da técnica de dança acadêmica ou ballet “clássico”. O vocabulário e termos técnicos utilizados continuaram a ser designados em francês no mundo todo, até os dias de hoje. Graças a isso, a tradição pode ser mantida oralmente pelos bailarinos, o que foi de importância fundamental na preservação do sistema, já que só no século XX criou-se um método de notação coreográfica que funcionasse de fato.
As encenações, suntuosas e superlotadas, eram realizadas com dificuldades nos salões; a multidão que ficava em cima de rampas e de pé não lograva uma visão favorável; os “tours” tornaram-se inevitáveis, assim como uma atenção mais acurada à posição “en dehors”, dos pés.
Em 1681, o ballet “Triomphe de l’Amour” contou, pela primeira vez, com a presença de bailarinas. Até então, somente os homens eram considerados artistas.
Mademoiselle Lafontaine, primeira mulher a se apresentar dançando em público
Mas os tempos eram outros: participação definitiva das mulheres, presença de profissionais dançando e opinando no principal órgão cultural do país deixava claro que a arte cortesã, que já se tornara “clássica” evoluíra. De fato, dentro do teatro, a perspectiva estética se modificou; visto de frente e de baixo para cima “o que antes era uma linha horizontal converteu-se em linha vertical; para acentuar esta linha dinâmica seguida pela vista, os braços, as pernas e por fim todo o corpo começaram a se elevar; saltos, piruetas e entrechats já conhecidos foram aperfeiçoados buscando dar leveza ascensional ao bailarino.
Registrar uma arte que ocupa tempo e espaço por meio de notação gráfica é um desafio considerável. É necessário detalhar como os movimentos se desenrolam no tempo e no espaço, em que ponto da música são executados, e como o corpo se posiciona tanto individualmente quanto em relação aos outros participantes. Além disso, a notação deve capturar a execução de cada parte do corpo, incluindo a direção do olhar, para que a complexidade da arte seja fielmente representada.
Em 1713, quase ao fim de seu reinado, Luís XIV criou a companhia permanente, composta inicialmente por dez rapazes e dez moças, estabelecendo-lhes salários, e tornou gratuito o ensino da escola oficial. Neste ano, ainda, o rei fez abrir ao público os Teatros do Palais Royal e do Petit Bourbon.
Graças à Academia vários bailarinos começavam a se destacar, dentre os quais Louis Dupré, Marie Sallé e de La Camargo. Os teatros já ostentavam tabelas de preços.
Em 1725, o maitre de ballet Pierre Rameau escreveu um pequeno livro intitulado “Le maitre à danser”, que fixou para sempre as normas da dança acadêmica. O ballet foi edificando suas bases de maneira tão sólida que lhe permitiu chegar ao século XXI como uma forma de expressão artística que encanta o mundo todo, em todas as idades.
Porém, em seu processo evolutivo o ballet sofreu inúmeras críticas. Reivindicava-se menos ênfase na técnica e mais atenção à parte expressiva do ballet.
Em 1727, nascia Jean Georges Noverre, que para muitos autores foi considerado o construtor do ballet da era moderna. As ideias de Noverre estavam muito além de seu tempo. O artista afirmou, entre outros preceitos: o ballet deve ser um drama dançado que corresponda em tudo ao drama falado ou cantado e, como este, deverá ter exposição, desenvolvimento e solução. Os momentos importantes devem ter para o espectador a força plástica de uma pintura. As mãos dos bailarinos devem dizer alguma coisa, se o rosto carece de expressão e os olhos não declamam o resultado será falho e a impressão falsa. É preciso arrancar as máscaras horrendas, queimar as ridículas perucas, suprimir os vestidos incômodos, banir as anquinhas mais incômodas ainda e substituir a tendência à rotina…”.
Suas concepções foram expostas no livro “Lettres sur la danse et sur le ballet” publicado em 1760. Entre as definições de importância encontradas em sua obra escrita podemos citar: “a técnica não é um fim, mas um prerrequisito e um meio necessário.
O ballet como arte erudita é bastante jovem se comparada com outras formas de expressão artísticas. Sua sistematização, metodologia e embasamento científicos exigiram um tempo considerável para serem desenvolvidos. Diante de sua complexidade, conferir ao ballet a forma cênica pela qual o conhecemos hoje foi uma tarefa complicada e demandou uns dois séculos ou mais para ser celebrada.
Em julho de 1789, Jean Dauberval, discípulo de Noverre, influenciado pelas ideias Rousseau e Diderot, encenou o ballet que caracterizou o pré-romantismo na dança: La Fille mal Gardée. O coreógrafo, alterando radicalmente os temas usados até então, apresentou somente personagens reais, inteligentes, objetivos, seguros de si, alegres e astutos. Explorou também uma idealização da vida no campo, numa clara reação às condições oferecidas pelas cidades por ocasião dos primórdios da era industrial.
LA FILLE MAL GARDÉE – ÓPERA DE PARIS
Por esse tempo, o ballet já havia dominado o mundo. Da Áustria passando por Berlim, Varsóvia, Stuttgart, Riga, Suécia, Dinamarca, Londres, Espanha, Portugal, Itália, Nancy, Nantes, Bordeaux, Lyon, Marselha, Bélgica, São Petersburgo, Moscou, Américas, nenhum país permaneceu indiferente ao ballet. Até o Brasil, com a vinda da corte, recebeu a sua iniciação em ballet e em danças cortesãs.
Carlo Blasis, no seu “Tratado elementar teórico e prático da arte da Dança”, abordou concepções que ainda hoje vigoram. Teorizou também sobre as sapatilhas de ponta, transformando-se no principal pedagogo do Romantismo, já que a necessidade de elevação, ansiosamente buscada na época, passava a ser atendida pelo padrão de beleza estética das bailarinas favorecidas pelo novo acessório. Daí para sempre, a sapatilha reforçada na ponta ficou fazendo parte inconfundível da dança acadêmica feminina, “estrutura tão nítida dele quanto as gazes e tutus brancos, leves e etéreos que aposentaram os trajes empetecados”.
SAPATILHAS DE PONTA
Por: Eliana Caminada
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